26 de Agosto, nascimento de Júlio Cortázar
... Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou
desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela
primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para
desfazer tudo e recomeçar, faço nascer de cada vez a boca que desejo, a boca
que minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com
soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto, e
que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a tua boca
que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha. Me olhas, de perto me olhas,
cada vez mais de perto e então, brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais
de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se
e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam
debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos
dentes, brincando nas cavernas onde o ar pesado vai e vem com um perfume antigo
e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus
cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos
beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos
vivos, de fragrância obscura. E se nos mordermos, a dor é doce; e, se nos
afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea
morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te
sinto tremular contra mim como uma lua na água...
Júlio Cortázar
Rayuela (O jogo da amarelinha)
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